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Mostrando postagens de 2020

A falta de mim dentro do outro.

  Quarenta e sete anos,  setenta e oito anos, noventa e dois, quarenta e um...  Falta de ar, dor abdominal, pernas inchadas, febre, dor, muita dor, você nem imagina!  Há quanto tempo começou? Usou algum medicamento? Tem comorbidades? Fez exames? Fez ou não? Tem que saber! Como ele está? Como ela está? Desidratada, taquipneica, mal perfundida...? Um ao lado do outro em cabines de impessoalidade. Cada olhar é um encontro de alguns minutos, é o atravessar da terra ao céu pelas púpilas mórbidas do homem que vai conhecer o terreno do infinito. Por quê evoluiu mal? O que foi que erramos?   Cada vida é tão imprevisível que dilata e encurta, morre e ressuscita tão subitamente nos muros do nosso olhar, nas quinas do nosso conhecimento sufocado. Cada vida é uma maquinaria de parafusos miúdos, sem chaves de fenda corretas. Preciso, então, concentrar-me em cada palavra de dor que sai dos lábios leigos desse homem e dessa mulher e transformá-las em versos de medicina, técnicos e frios. Os raios e f

O sangue de José

 Era o primeiro quarto no segundo corredor. A primeira vez que o vi estava sedado e entubado, à mercê dos disparos do ventilador. Dia primeiro de setembro de dois mil e vinte. Demorei a examiná-lo já que não havia o problema de estar incomodando-o, tampouco o contrário. Parei em frente à ele, e contemplei cada cicatriz e hematoma do seu corpo magro e esquelético. Auscultei seus batimentos e murmúrios com calma. Pronunciei em voz alta suas pontuações na escala neurológica.  Fiz dele um breve treino para recapitular a propedêutica.  No dia seguinte, passado o furacão de conhecer o desconhecido, estava ainda ele inerte com os mesmos olhos saltados, porém respirando já com os próprios pulmõezinhos pequeninos, sem tubos, sem drogas. Não ditava frases inteiras, porém articulava com nitidez palavras-chave. Articulava com os lábios e as pupilas daquele olhar de interrogação. José Ricardo, que já tinha a tetraparesia do doente crítico, movia-se com as lágrimas escondidas nas quinas do olhar.  E

Lembrei de você

 Olhe para cá, meu bem. Olhe aqui no fundo dos meus olhos, sem medo.  Hoje de manhã pensei em você. Eu lembrei da sua voz suave e dos seus lábios esgarçados. Lembrei de quando você me convidou para sentar à luz da lua à meia noite, na beira do mar de Santa Luzia. Era tarde, mas estàvamos em euforia como se já fosse o nascer do sol de inauguraçao do universo. Não tinha dado nem tempo de seus cabelos terem se livrado da maresia. Mar e heresia de nossos pés. Estàvamos escondidos à cumplicidade das estrelas, a quem tínhamos confiado o segredo de nossa  transgressão.  Não desvie seu olhar, querida. Somos só nós dois. Não se culpe por ter feito o que fez. Seu instinto irrompe de lugares muito mais profundos do que seu mero superego, do que sua vã filosofia de conveniência social. Obedeça seus desejos súbitos. Não os questione tanto assim. Isso cansa à você e aos outros.  Na verdade, pequena, hoje vim aqui com vontade de lhe entregar flores e um beijo. Lembrei, entretanto, que você não cuida

Ao Geraldo: homem de lança

Senhor Geraldo dorme ali ao lado da janela, de frente para o estacionamento do hospital. Ele está ali à beira das árvores, mas perdeu setenta por cento da capacidade da visão. Não vê as flores e folhas e os carros. Não enxerga com detalhes meus olhos como eu vejo os dele. Quem sou eu para Geraldo? Um risco branco às oito horas de cada manhã? Sou a voz que pergunta suas dores e se urinou. A mão que retira o cobertor dos pés e sente se estão inchados. Eu sou a notícia que ele não quer ouvir. "Vai ficar aqui conosco ainda, seu Geraldo." Ele carrega a dor da solidão e do que consome todo seu corpo por dentro e por fora. Ali no canto do quarto, ele pensa tanto, tanto (tanto.) que quando o vi dormir até franzia os olhos. Estar a pensar sobre a vida sem cessar certamente deve lhe dar a sensação de viver por uma eternidade e ter a angústia do segundo sofrido e demorado. Em uma de suas eternidades e divagações dilacerantes, houve uma epifania. Foi o ápice do desespero e o mergulho n

Índia Zilda

"Tá cada dia mais bonita, hein filha." Sessenta e seis anos, com sorriso postiço e cabelos de índia além dos ombros. Não tinha queixas e agradecia a qualquer um que lhe viesse ao leito. Ela era uma senhora tão humilde que meu toque à sua mão para sentir o pulso já lhe fazia sorrir, e então logo dizia: - Que mão quentinha. A minha está tão fria. Eu explicava com cuidado: - É porque estava andando para lá e para cá, dona Zilda. Sorria. O coração da senhora era grande e bonito, mas parte estava a fadigar. Artérias obstruídas tal qual parte de um caminho nosso cheio de pedras. Retirá-las e deixar o sangue fluir. Dona zilda partiu a desentupir os canos do coração. Tão bela e feliz sem dentadura, que era como se houvessem dentes de ouro de Deus pendurados ali. Era uma despedida da terra. Uma Índia nua sem as batidas do coração. Vestígios da terra se dissipam no universo. A fragilidade do humano me impressiona a cada ida, a cada suspiro.

Os pulmões de Aloizia

Alguns mililitros removidos do sexto espaço intercostal, de aspecto turvo e inodoro. "Está doendo, Aloizia?" Está doendo. Já vai acabar e você deita novamente. Ela tem dez anos a menos que minha mãe e dez quilos também. O rosto é quase triangular, com vértices bem delimitados pela proeminência de seus ossos. Os cabelos finos e curtos, e os lábios pálidos quase se escondiam dentro do buraco fundo de sua face de terror. Pode se deitar agora. Vai ficar um pouco dolorido no local da picada. A moça deita, com a cabeceira inclinada e respira ligeiramente melhor. Aceita mastigar quinze grãos de arroz e um gole de água curto e disfarçado. Era um aceno ao estômago que gemia e um banho rápido das papilas da língua. Que bom que tinha se alimentado, porém a refeição servida há pouco parecia intocada. Grãos, leguminosas e proteínas ali separados. Nenhuma porção de feijão sobreposta ao arroz. Nada! Claramente Aloizia estava em jejum. Não ingeria alimentos e nem a própria vida. Estav
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Olho meus olhos na manhã desse dia simples. Recoloco minhas estantes da personalidade em cada quina da solidão. Questiono quais partes de mim não se encaixam nas paredes desse quarto branco. Quais partes de mim? Olho meus olhos no espelho encardido do apartamento em reforma e juro dormir mais cedo nessa noite. O que há em mim à noite que não incomoda à manhã? O sol nasce moribundo e cai sobre minhas pálpebras, que se esforçam para levantá-lo e jogá-lo na cidade a fim de iluminar telhados e antenas parabólicas. O sol subitamente pula e arranha minhas pupilas entremeadas no lago castanho tão comum. Uma fruta, um copo de leite e um café forte está bom. Acorde! Hoje é dia de encontrar-me nos olhos dos outros, então. Ali consigo ver meus gestos e manias, às pupilas alheias em lagos cristalinos e exuberantes. Dou bom dia para quem vejo e me vê, e enxergo a imagem das minhas curvas e imperfeições. Ah! Quais partes de mim são minhas? Tenho preocupação em dizer que, por vezes, a solidão me a

Da solidão ao sol de saída.

A solidão é o eco do sussurro da alma. A companhia da própria respiração se confunde com o som das folhas das árvores da casa sete. Eu respiro as entrelinhas da moça que costuma habitar esse canto e agora não está. Tento ouvir o som que sai de mim. Há sim um som que salta acanhado dos meus poros e quer confessar-me algo. A essa manhã, o despertador foi, então, essa música que arranhava minha pele e subia ao meu ouvido. Acordei com a música do meu corpo e do meu próprio eco. Folhas, pássaros e borboletas nem repararam a ansiedade dos meus olhos. Eles juravam que morava ali há anos e cantaram para mim como se fôssemos amigos. Tons sopranos de sabiás, cores amarelas das asas de borboletas e a melodia de folhas a cair sobre o telhado, como se já estivesse chovendo. Abri as portas para receber o sol. Aproveitei a companhia dele e comi os pedaços de maçã sentada à rede. Conheço a textura e sabor da fruta de olhos fechados, porém hoje tudo parecia diferente. Talvez o sol e a solidão tenha