A falta de mim dentro do outro.

 

Quarenta e sete anos,  setenta e oito anos, noventa e dois, quarenta e um... Falta de ar, dor abdominal, pernas inchadas, febre, dor, muita dor, você nem imagina! Há quanto tempo começou? Usou algum medicamento? Tem comorbidades? Fez exames? Fez ou não? Tem que saber! Como ele está? Como ela está? Desidratada, taquipneica, mal perfundida...? Um ao lado do outro em cabines de impessoalidade. Cada olhar é um encontro de alguns minutos, é o atravessar da terra ao céu pelas púpilas mórbidas do homem que vai conhecer o terreno do infinito. Por quê evoluiu mal? O que foi que erramos? 

 Cada vida é tão imprevisível que dilata e encurta, morre e ressuscita tão subitamente nos muros do nosso olhar, nas quinas do nosso conhecimento sufocado. Cada vida é uma maquinaria de parafusos miúdos, sem chaves de fenda corretas. Preciso, então, concentrar-me em cada palavra de dor que sai dos lábios leigos desse homem e dessa mulher e transformá-las em versos de medicina, técnicos e frios. Os raios e facas que cruzam o peito dele serão a dor torácica nos meus papeis, as viagens distantes são crises de ausência e os balões que repuxam as cordas das vísceras dela se transcrevem em simples distensão abdominal. Nossos aviões querem aterrissar no terreno de quem sente depressa. Queremos vôos precisos sem turbulência ou desvio de trajetos.

 Cada dia é a tentativa de batalhar comigo mesma em busca de mim. Não bastam poesias e palavras de bem-estar. Não bastam sorrisos. O que querem de nós é eficiência para calcular a matemática desses corpos empilhados. Como dois mais dois, calculam-se as fórmulas de Pedro e Margarida. Fórmulas de oxigênio e medicamentos. Fórmulas de diagnósticos e propostas terapêuticas. Cada dia é a tentativa de esboçar e organizar na mente as pedras todas jogadas no copo de vidro desse homem, no corpo de cedro dessa moça. 

 Não está respirando. O coração não está batendo. Há dois minutos, Pedro tinha sim aberto os olhos cinzentos e reclamado de sua queda. Ele era tão comprido que mal cabia na maca, e já de longe eu enxergava os dedos azuis dos seus pés grandes. Dentro de Pedro Augusto a orquestra sinfônica estava defasada, com sons dos violinos em desarmonia com as flautas quebradas. Eu só ouvi as notas ligeiramente desafinadas daquela composição, e não consegui antever qual instrumento faltava ali naquele corpo magro e longilíneo. Sabe-se lá se clave de fá em fálta, se clave de sol em solo. Sabe-se se era o coro de boas-vindas daquela ilha. Sabe-se lá.

 Não está respirando mesmo, não palpo os pulsos. Você sente aí? Sônia também estava de olhos abertos, suando frio como se tivesse ainda correndo a maratona de anos-luz ao céu, pedindo clemência para acabar o sofrimento daqueles dias eternos. Tinha ela uma aorta tão grande, que explicava com propriedade: "Está aqui, rasgando em mim, querendo dilacerar meus nervos." Dizia sim: "Vai logo me matar aqui, doutora.". Do outro lado, escutamos "Afastem-se!". Um choque elétrico no peito é a ressurreição dos olhos azuis desse moço. Que homem bonito torna à terra para viver conosco novamente. 

 E estamos nós respirando? Temos corações? Eu nem sei. Quero ter em mim um arsenal para atirar em todos os inimigos que não enxergo pelos olhos de quem é doente. Quero ouvidos banhados a ouro para escutar com acurácia as notas fora do tom nas canções dessas vidas sutis e frágeis. Quero mãos de prata para colocar um coração de volta ao ritmo dos homens. Ou de volta ao ritmo dos Deuses. Quero mais de mim pra por no outro.  




 
 

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