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Mostrando postagens de junho, 2020

Ao Geraldo: homem de lança

Senhor Geraldo dorme ali ao lado da janela, de frente para o estacionamento do hospital. Ele está ali à beira das árvores, mas perdeu setenta por cento da capacidade da visão. Não vê as flores e folhas e os carros. Não enxerga com detalhes meus olhos como eu vejo os dele. Quem sou eu para Geraldo? Um risco branco às oito horas de cada manhã? Sou a voz que pergunta suas dores e se urinou. A mão que retira o cobertor dos pés e sente se estão inchados. Eu sou a notícia que ele não quer ouvir. "Vai ficar aqui conosco ainda, seu Geraldo." Ele carrega a dor da solidão e do que consome todo seu corpo por dentro e por fora. Ali no canto do quarto, ele pensa tanto, tanto (tanto.) que quando o vi dormir até franzia os olhos. Estar a pensar sobre a vida sem cessar certamente deve lhe dar a sensação de viver por uma eternidade e ter a angústia do segundo sofrido e demorado. Em uma de suas eternidades e divagações dilacerantes, houve uma epifania. Foi o ápice do desespero e o mergulho n

Índia Zilda

"Tá cada dia mais bonita, hein filha." Sessenta e seis anos, com sorriso postiço e cabelos de índia além dos ombros. Não tinha queixas e agradecia a qualquer um que lhe viesse ao leito. Ela era uma senhora tão humilde que meu toque à sua mão para sentir o pulso já lhe fazia sorrir, e então logo dizia: - Que mão quentinha. A minha está tão fria. Eu explicava com cuidado: - É porque estava andando para lá e para cá, dona Zilda. Sorria. O coração da senhora era grande e bonito, mas parte estava a fadigar. Artérias obstruídas tal qual parte de um caminho nosso cheio de pedras. Retirá-las e deixar o sangue fluir. Dona zilda partiu a desentupir os canos do coração. Tão bela e feliz sem dentadura, que era como se houvessem dentes de ouro de Deus pendurados ali. Era uma despedida da terra. Uma Índia nua sem as batidas do coração. Vestígios da terra se dissipam no universo. A fragilidade do humano me impressiona a cada ida, a cada suspiro.