Ao Geraldo: homem de lança

Senhor Geraldo dorme ali ao lado da janela, de frente para o estacionamento do hospital. Ele está ali à beira das árvores, mas perdeu setenta por cento da capacidade da visão. Não vê as flores e folhas e os carros. Não enxerga com detalhes meus olhos como eu vejo os dele. Quem sou eu para Geraldo? Um risco branco às oito horas de cada manhã? Sou a voz que pergunta suas dores e se urinou. A mão que retira o cobertor dos pés e sente se estão inchados. Eu sou a notícia que ele não quer ouvir.
"Vai ficar aqui conosco ainda, seu Geraldo."
Ele carrega a dor da solidão e do que consome todo seu corpo por dentro e por fora. Ali no canto do quarto, ele pensa tanto, tanto (tanto.) que quando o vi dormir até franzia os olhos. Estar a pensar sobre a vida sem cessar certamente deve lhe dar a sensação de viver por uma eternidade e ter a angústia do segundo sofrido e demorado. Em uma de suas eternidades e divagações dilacerantes, houve uma epifania. Foi o ápice do desespero e o mergulho no infinito da vida.
"Doutora, ele está te chamando"
Seu Geraldo me chamava ali com os olhos de horror mais escancarados que a janela de alumínio, por onde vazava o ar frio das cinco da tarde.
"O que o senhor quer dizer pra mim?"
Ele se concentrou e ficou em silêncio. Éramos em dois ou Deus estava ali também? Éramos em três, de fato. Esperei que ele fizesse sua confissão ao céu que não via pelas frestas mas sentia nas próprias lacunas de seu âmago.
"Estou angustiado. Sinto uma sensação muito ruim."
As mãos agarradas na beira da cama, as pernas cruzadas e o olhar fixo.
"Acho que vou morrer, você sabe?"
O que eu poderia fazer? Os Deuses do mundo poderiam contar a ele o que eu não conseguia ouvir. Eu não sei.
Queria dar-lhe um livro para reduzir o vão dos segundos, mas ele não sabia ler. Queria dar-lhe um pedaço do que ardia em mim quando o ouvia falar em morte. Não queria nada. Era só o anúncio do medo da escuridão.
Geraldo é homem da lança, o sinônimo da força incrustada no incômodo de um tumor.
Minha presença e minha voz são parte do antibiótico que penetra pelas suas veias saltadas na pele flácida. O medo da morte, entretanto, não circula no sangue e em nenhum órgão. Que remédio haveria de o alcançar?
Enxerguei nos olhos quase cegos daquele homem a poesia do que costumo automatizar durante todos os dias. Enxerguei a beleza da vulnerabilidade e a certeza da pequenez do humano.
Peguei nas mãos dele e disse para confiar em mim. Ele fechou os olhos e concentrou a atenção nas minhas palavras.

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