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Mostrando postagens de 2019

Com urgência

Um dia, à consulta, uma senhora confessou-me desesperada em tons dispneicos:  "A única coisa que queria era ir até a padaria, sem me cansar. Você entende? Sair de casa e comprar um pão sem medo." Padecia de insuficiência cardíaca congestiva descompensada, com dificuldades de acesso ao hospital para adequado manejo. Modifiquei os medicamentos para pressão e otimizei os diuréticos. A senhora, então, contemplou meu aspecto juvenil e inexperiente, e não parecia crer na melhora do quadro clínico diante de minhas condutas. Sim, estava cética após transladar entre médicos e médicos. Queria única e exclusivamente um encaminhamento à cardiologia, com pedido de urgência. Queria o quanto antes alguém que pudesse resolver seu problema de uma vez por todas. Não seriam necessários títulos ou currículos rebuscados, contanto que sua falta de ar aos mínimos esforços não mais ocorresse.  Eu, crua e tão paciente como ela, obedeci à vontade e anotei no papel: "COM URGÊNCIA". Escre

Amor alfabético

Amar Amar baixinho para ninguém escutar. Amar com cabelos bagunçados e os dentes sujos de sementes do café da manhã. Amar ao avesso como quando se veste de modo errado a blusa do pijama e o sono se torna ainda melhor. Amar em claves de fá, já que o sol é só sempre sol à melodia da nossa rotina. Um amor desmascarado que, de tão amor, ama as paredes descascadas da personalidade geniosa e o azulejo encardido da casa de preconceitos. Um amor puro, purinho, com pureza de água cristalina dos lençois maranhenses. Purificado no filtro de barro que restou dos antepassados. Um amor sem precisar dizer que é amor. O relógio da sala se pronuncia às dez horas no domingo e é como se o homem dos olhos verdes do céu nos lembrasse da hora do café. Onde tomaremos o café? Depois de ir á feira? Vamos buscar bananas e legumes. Um amor feito de debates inconclusivos enquanto se conserta o desenho da sobrancelha . Um amor mergulhado na taça de vinho à noite de frustações. O cálice derrama a efêmera

despedida

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De uma ingratidão imensurável, ela acordou naquele dia com a vontade de se despedir. Despedir-se dos móveis de casa e da baderna de seus papeis e diários inacabados. Despediria-se dos pais e dos mais próximos. Acordou com o mau hálito distintivo de sua rotina matutina, os fios de cabelo oleosos e pegajosos e um peso nas costas que lhe fazia curvar já às sete horas da manhã. Um peso nas articulações que já lhe propunha a volta à cama. Despediria-se dos amores que lhe trouxeram alguma conclusão ou desconjugaram algum enraizado princípio. É verdade, sim, que usufruía de conforto qualificado e gozava de boa alimentação sempre disponível à mesa. Aos períodos de indecisão e felicidade, tinha a certeza de encontrar quem lhe esmiuçasse as fontes de angústia dos seus pensamentos e festejasse com sinceridade as pequenas vitórias de seu cotidiano microcósmico. Entretanto, algo sólido e áspero já se impactara nos estreitamentos de suas vias aéreas há algum tempo. Às tentativas de empaturrar-se

Sobre Aline, sobre linhas

A moça se despede de uma terra estrangeira com as mãos sujas de lama. À sua frente, encara um oceano mais limpo que os lagos da sua origem. Respira um ar emprestado e à expiração, confessa ao mar o turbilhão de ideais que brotaram nos labirintos de seus neurônios. Não brotam mais?  Era ela moça decidida e de coragem. Entretanto, estar à mercê da imensidão da vida a põe mais vulnerável a sentir os ventos do destino.  A gora em terra mãe, a moça redescobre o gosto do café em xícara própria e minimiza os defeitos da rua onde mora. Abre a porta da sala e ao espelho, encara sua própria imagem. Ali estavam os cabelos mais compridos, os olhos mais cansados e o âmago revirado e surrado pelo sal de águas desconhecidas, pela companhia de seres humanos culturalmente intrigantes. Observa ao redor os móveis intactos, os quadros da parede escondidos sob a lâmina de pó que se acumulara naqueles meses e as estatuazinhas que tanto apreciava à estante. De fato, tudo estava intacto. O que não o estav

O menino dos fios de ouro

Sentado ao colo da avó, estavam os olhos verdes vistosos e ingênuos escondidos por baixo de fios de cabelo pintados em balde de ouro. Sentava-se ali aquela criança tão serena, que observá-la era como ler versos de uma poesia sinestésica. A ode lírica se fazia pela sua contemplação diante de nossas conversas de adulto ininteligíveis, pelas nossas piadas nada hilariantes à tentativa de ouvir sua voz. Um menino esculpido pelos dedos angelicais do céu misterioso e agora, pois, vagava ali no chão de barro. Parecia-me querer conhecer as quinas do universo e entender, sim, o motivo das cores, das letras, dos nomes. Entretanto, como haveria de começar a reconhecer o canto dos canários se ao acordar àquele colchão não encontra quem lhe explique a orquestra da vida? Com seis anos, acumula as palavras que encontra pelo chão. Recolhe-as no bolso e utiliza-se dos olhos cristalinos para preencher o vazio dos vocábulos que tem. “É hora de almoçar, menino. Sente-se aqui.” O guri se ajeita

Olive

I A dor amanhecida de Olive Ela olhou pela janela às sete horas da manhã. Com os pés descalços e habitualmente doloridos, levantou-se a dois dedos de sua altura e pôs - se a observar o compasso da cidadela. Ali abaixo do seu nariz, três homens e duas donzelas em uma roda rindo em salvas. A cada três ou quatro comentários, a erupção de uma gargalhada em coro. Ao centro do círculo, haviam colocado uma garrafa de vinho tinto. Apenas uma. Em toda sua análise da cena, porém, não viu ninguém recorrer a alguns goles. Talvez já tivessem saturados de bebidas da longa noite.  Ela voltou à postura com pés inteiros sobre o chão. No horizonte, o morro Sorine mais belo que o habitual. Entre nuvens espaçadas, supunha uma pintura impressionista daquela manhã fria atrás da janela. A melancolia de Olive já estava se intensificando a cada dia. Até mesmo seu café com leite quente sobre a mesa se tornara objeto de reflexões. Abriu o pacote de torradas com certo ar de displicência e cortou duas