Olive


I

A dor amanhecida de Olive

Ela olhou pela janela às sete horas da manhã. Com os pés descalços e habitualmente doloridos, levantou-se a dois dedos de sua altura e pôs - se a observar o compasso da cidadela. Ali abaixo do seu nariz, três homens e duas donzelas em uma roda rindo em salvas. A cada três ou quatro comentários, a erupção de uma gargalhada em coro. Ao centro do círculo, haviam colocado uma garrafa de vinho tinto. Apenas uma. Em toda sua análise da cena, porém, não viu ninguém recorrer a alguns goles. Talvez já tivessem saturados de bebidas da longa noite. 
Ela voltou à postura com pés inteiros sobre o chão. No horizonte, o morro Sorine mais belo que o habitual. Entre nuvens espaçadas, supunha uma pintura impressionista daquela manhã fria atrás da janela. A melancolia de Olive já estava se intensificando a cada dia. Até mesmo seu café com leite quente sobre a mesa se tornara objeto de reflexões. Abriu o pacote de torradas com certo ar de displicência e cortou duas fatias de queijos. Como se estivesse a dedicar - se a uma obra de arte, pôs as porções de queijo enfileiradas sobre a torrada despedaçada.
Nesse momento, já era possível escutar com maior nitidez o burburinho dos jovens a alguns metros de sua porta da cozinha. E não era ela uma jovem também? Sorveu o primeiro gole de café impulsivamente, de tal modo que aquele ato fosse uma defesa violenta contra a conversa incessante e em progressivo volume. Já ao primeiro gosto do leite da manhã, queimou o céu da boca e a língua. Ah, sim, uma afta de presente para ser apreciada ao longo do dia! Doeriam seus pés e seus lábios. Seus punhos e tornozelos. Seus joelhos e interfalanges. Doeria - lhe a vida ao lembrar da dor que doi. A dor que nem um verso de amor cura tampouco um beijo sincero de boas vindas. 

A moça pálida tinha muito medo do futuro. Sentia-se cada vez mais dolorida em cada micro espaço de sua articulação. Costumava valer-lhe de suas próprias lágrimas para satisfazer o dia que engolia em seco e calar os lábios da angústia de viver. Definitivamente, angustiante. Todos os dias eram iguais: acordar sem nome, comer uma fruta e andar sobre a própria casa com a dor a vir em tempestade. Encontrar os olhos de outrem a questionar: 
"Ainda está sob essas tormentas, meu bem?"
Sim, ainda! Ainda! Ainda!
Ela caminhava com o mesmo ritmo, mas sabia que por dentro de si tudo estava em migalhas, apodrecido. Há quem tenha uma frequência cardíaca estável de sessenta e quatro batimentos por minuto, com um coração desgastado e sofrido. Há quem tenha um cérebro destoante e por vezes, arque com as consequências de uma convulsão. Há quem falhe em produzir as pequenas células que deslizam para cima e baixo na correnteza sanguínea. Ela, por sua vez, tinha os membros podres. Quando foi que começou? Como a moça explica os mesmos versos de tortura a quem lhe pergunta e lhe diz que é muito nova ainda? 
Tinha cabelos castanhos, e a aparência comunal. Entretanto, o que poderia ser diferente era a face de terror pelo infinito com previsão de piora. Diariamente encara o infinito da própria existência, e então, vem à tona a falta de ar. Põe-se face a face com o abismo de sua dor. 
A única solução por hora seria embeber essas articulações frágeis sob o vinho tinto da meia noite. Em vertigem ébria, consegue fechar os olhos e fingir que está tudo bem, esquecendo - se do que está grudado às juras da eternidade no seu corpo. Como tatuagem.


II

Pupilas coloridas

Mergulha nessas ondas de reflexões, afoga-se nos próprios medos e quando vê já são onze horas da manhã. Onze e meia da manhã de domingo e ainda está ali olhando fixamente à maçaneta que vibra a cada casquinhada da juventude domingueira. A metade do café que não tomara estava ali a admirando também. O líquido preto e frio dentro da xícara era parte da composição da atmosfera melancólica de Olive. 
Ela se levanta lentamente com gestos cautelosos de idosa, e joga o resto do café sobre a pia. Recolhe os lixos acumulados e abre a porta para colocá - los sobre a estrutura da calçada, onde estavam as moças e rapazes já sentados e moribundos. Os passos de Olive soaram como terremotos àqueles ouvidos.
Os olhos da moça cruzaram - se aos reflexos da luz do rapaz moreno semiencurvado. Seis eternos segundos de encontro de pupilas. O reflexo castanho claro dele em sintonia com os verdes escuros dela. 
Irrefutavelmente, a menina era dona de um belo par de olhos da cor do Rio Salmedes, da cor das montanhas do monte Sorine. Olhos sinceros, que exalavam poesia em cada direção. Entretanto, estavam ali escondidos acima de nítidas bolsas escuras de cansaço, abaixo de sobrancelhas bagunçadas de omissão consigo mesma. Para admirar o encanto de Olive, seria necessário ter longas pás a fim de cavar, então, suas preciosidades ocultas sob as montanhas do comum. O belo furtivo da dama era capaz de raptar subitamente os sentidos de quem estivesse disposto ao trabalho dessa mineração.
Após a colisão de almas por essas janelas do olhar, Olive abaixou a cabeça, depositou o saco de chorume e logo voltou à sua toca, como um rato que se vê sujeito à morte. Sentou - se à cadeira da qual levantara há exatamente dez minutos, e sentiu o corpo inteiro latejante. Dessa vez, não somente o corpo. Agora era capaz de velejar no próprio mar de vergonha e pena de si mesma. Deixar-se ser vista tão longa e intensamente como há pouco era algo que a asfixiava. Certamente, era como tornar nuas suas cicatrizes mais antigas a um desconhecido tão elegante e apresentável.

III

Maria de cerâmicas
A propósito de cicatrizes, devo acrescentar: há alguns meses, a moça Maria, bonita e pensante, contou-me sobre elas. Alguma parte de nós que sangra e coagula? Algo de nós que se deixa à mostra no corpo para lembrar do que acidentalmente foi danificado, em algum momento? Sim, de fato. Entretanto, Maria se atentou para a tradição japonesa de reparo de cerâmicas, Kintsugi, ao questionar por quê eu demorava tanto a escrever naquele livro que me presenteara há anos.
Segundo a prática oriental, potes de cerâmica quebrados, cujos destinos seriam a princípio o lixo, são reconstruídos. Colam-se as porções despedaçadas umas às outras com pó de ouro de modo que a nova obra se caracteriza por linhas valiosas e irregulares a simbolizar a tão perfeita constituição do que estava desagregado outrora. Nesse sentido, cicatrizes e fragmentos constituiriam o belo e especial. Maria lança tais filosofias no meu universo miúdo e põe-me a investigar a beleza do que apago em minhas entrelinhas.
Olive, por outro lado, prende-se no vão entre a cozinha e a sala de estar, sem cogitar em fundir suas cerâmicas. Prende-se em si mesma, à tentativa de recolher e varrer o que se despedaça de si mesma. Varre a todo momento, como um vício, um transtorno obsessivo compulsivo. Reúne tais porções em um pote de vidro transparente, que se localiza em frente ao espelho. Então, ao defrontar-se com sua imagem no mesmo ângulo do dormitório, já se relembra do imperfeito coletado, logo ali. Exatamente ali.


IV

Pelas janelas

Em poucos minutos, Olive subiu ao quarto e olhou novamente aos jovens reunidos à calçada. Dessa vez, tem como foco o moreno semiencurvado. Agora sem tanta certeza sobre a cor dos seus olhos, mas também isso não tinha mais importância. A fusão da íris de ambos sob a luz do dia era capaz de produzir a cor ideal da admiração. Ali ao lado do seu recipiente de cerâmicas despedaçadas, Olive vê-se prestes a fingir que não porta tais manias doentias.
Ao ouvir o som do abrir das janelas de madeira, o moço se desencurva e olha em direção ao alto também. Olha e oferece um sorriso branco e cansado. Apoia a mão direita sobre o chão, pende o corpo magro para um lado e reordena os fios de cabelo com a mão esquerda. O ato meticuloso com finalidades atrativas põe a mulher a poucos metros a contemplá-lo, em saltos cardíacos, em ventanias de sensações. A dor rotineira se desvanecia sob as anestesias que tal emoção particularmente produzia.
Sentia-se no lucro afinal já haviam se encontrado por duas janelas opostas, em poucos minutos. As janelas do quarto de madeira que recobriam suas imperfeições e as janelas do olhar, que exalavam a pureza de sua imperfeição. 


Comentários

  1. Quero tanto TANTO continuar lendo. Não pare, você consegue alcançar as pessoas com sua poesia, Cecília.

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