No leito nove.

 A porta de entrada eram os bráquetes dos seus dentes, os lábios ressecados e os olhos cansados. Tão magro que os braços e pernas se uniam ao tronco como um bloco. Ele nem sabia descrever ao certo sua queixa de tão humilde e escasso que era o leque de seu vocabulário. Eu perguntava sobre sua vida, e puxava com esforço a cordinha que me levava até o lugar onde queria chegar. Então, descobri que trabalhava em indústria de cromagem, e não estudava mais. 

Ele tinha vinte e quatro anos, mas vendo-o ali tão frágil e derramado sobre o leito, dava-lhe facilmente dezoito. Era novo, porém seu corpo já era um turbilhão de reações orgânicas e mutações. Foi premiado com uma provável leucemia mieloide crônica, e de rua em rua, hospital em hospital, chegou ali em nossas mãos para ter sua doença solucionada de uma vez por todas. De uma vez por todas, por favor.

Eu tinha pouco mais que sua idade, mas possuía naquele momento a propriedade absoluta de intervir de algum modo nas célulazinhas de seu corpo e na dinâmica de seu metabolismo. Não tive tempo de perguntar se gostaria de ter filhos, se sonhava em viajar ou conhecer outro país. Ele ficava ali no cantinho daquele quarto nove, e ficou até o fim. 

"Está em parada cardiorrespiratória." Reanimar seu corpo magro e desnutrido era uma meditação e concentração. Estávamos em sincronia tentando bater no lugar de seu coração. Assim foi a corrida do hospital ao céu durante quarenta minutos. Nós vestidos de branco e  calçados com sapatos sujos de sangue, na força e munição para juntar os cacos das vidraças de Fabrício, enquanto o universo, com suas metralhadoras e harmonia, embalava os órgãos e sentimentos do menino para lançar na constelação do infinito. Fabrício: o artesão de metal. O artesão do bairro, que se perdia na imensidão de seu baço, na fraqueza e confusão de sua medula. Quem somos nós aqui embaixo para carregar vidas e dirigir com maestria a orquestra do corpo humano? Temos tão pouco tempo na terra para digerir a miríade de possibilidades e desfechos da doença. Há os que captam as entrelinhas da medicina com velocidade; há os que, em miopia dolorida, se encurvam no microscópio para enxergar o atacante camuflado ali em cena. Queira o destino nos fazer sensíveis para deixar Fabrícios nos pés do mundo. 

Tatuei no corpo alguns espíritos de guerra, como Fabrício e Isabela. Mesmo sabendo da vida que se dissolve facilmente e é triturada em dias, minutos ou horas, preocupo-me em querer coroar cada episódio de minha jornada. A vulnerabilidade de nossos caminhos deveria ser o hino de nossas manhãs, para vivermos com mais constância e verdade. Sem medo. 



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