despedida

De uma ingratidão imensurável, ela acordou naquele dia com a vontade de se despedir. Despedir-se dos móveis de casa e da baderna de seus papeis e diários inacabados. Despediria-se dos pais e dos mais próximos. Acordou com o mau hálito distintivo de sua rotina matutina, os fios de cabelo oleosos e pegajosos e um peso nas costas que lhe fazia curvar já às sete horas da manhã. Um peso nas articulações que já lhe propunha a volta à cama. Despediria-se dos amores que lhe trouxeram alguma conclusão ou desconjugaram algum enraizado princípio.

É verdade, sim, que usufruía de conforto qualificado e gozava de boa alimentação sempre disponível à mesa. Aos períodos de indecisão e felicidade, tinha a certeza de encontrar quem lhe esmiuçasse as fontes de angústia dos seus pensamentos e festejasse com sinceridade as pequenas vitórias de seu cotidiano microcósmico. Entretanto, algo sólido e áspero já se impactara nos estreitamentos de suas vias aéreas há algum tempo. Às tentativas de empaturrar-se com litros de água e promover a descida daquele objeto tão consistente, apenas tossia e regurgitava migalhas de refeições antigas. Tossia, por vezes, escarros hemoptoicos como se de fato padecesse da enfermidade tuberculosa. 

Não era caracteristicamente bela ou excêntrica, tampouco misericordiosamente disforme. Era ela feita de traços únicos e medianos, aliados a uma personalidade oscilante e desconhecida. Na praia de suas entranhas psicológicas, cavava exaustivamente buracos de areia à procura de si e logo mais o mar vinha a destruir seus trabalhos. Aquilo tudo seria o medo tão imponente do futuro? Era tamanho o pânico que cogitar sobre o amanhã dava-lhe falta de ar. Sim, ainda mais falta de ar pela dificuldade do que já estava impactado na glote. 

Acordou com vontade de despedir-se das tentativas de agradar a si mesma, como quando permanecia nua à frente do espelho e examinava rigorosamente as porções irregulares de suas curvas e trajetos. Despediria-se de uma vez, então. Desse modo, a imagem que já causara para si e outrem se gravaria na eternidade, sem a necessidade de exaurir energias ao encontro da perfeição de suas atitudes à vitrine.
Munch-Desespero

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