Os pulmões de Aloizia

Alguns mililitros removidos do sexto espaço intercostal, de aspecto turvo e inodoro.
"Está doendo, Aloizia?"
Está doendo. Já vai acabar e você deita novamente.
Ela tem dez anos a menos que minha mãe e dez quilos também. O rosto é quase triangular, com vértices bem delimitados pela proeminência de seus ossos. Os cabelos finos e curtos, e os lábios pálidos quase se escondiam dentro do buraco fundo de sua face de terror.
Pode se deitar agora. Vai ficar um pouco dolorido no local da picada.
A moça deita, com a cabeceira inclinada e respira ligeiramente melhor. Aceita mastigar quinze grãos de arroz e um gole de água curto e disfarçado. Era um aceno ao estômago que gemia e um banho rápido das papilas da língua.

Que bom que tinha se alimentado, porém a refeição servida há pouco parecia intocada. Grãos, leguminosas e proteínas ali separados. Nenhuma porção de feijão sobreposta ao arroz. Nada! Claramente Aloizia estava em jejum. Não ingeria alimentos e nem a própria vida. Estava apática.
Seria aquele um estado de espírito de conversa com Deus? Logo se deitou totalmente e fechou os olhos, esboçando um semblante de agonia. Deus estava lhe explicando os primeiros passos para entrar no portal.
Creio sim que conversava mais com o infinito do céu do que com médicos e enfermeiros. Os anjos do mundo penetravam em suas entranhas e comandavam a orquestra do corpo humano, ao passo que os homens de branco insistiam em mover as peças amarradas nas cordas celestiais.

Subitamente, a máquina humana de Aloizia desestabiliza mais uma vez.
"Vamos entubá-la e inserir um cateter central."
Ali eu estava segurando a cabeça da mulher e posicionando a mascara de oxigenio sobre seu rosto. Olhava para a esclera amarelada dos olhos semicerrados da mulher. Sentia a face magra e fria nos meus dedos, e conversava com meus pensamentos, com os pensamentos dela.
Concentrei-me na gravidade daquela situação e esforcei-me para me agarrar à razão naquele instante. Embriagar-se de sentimentos não adiantaria.

"Veja bem. Você deve empurrar a língua e visualizar as pregas vocais e então, introduzir o tubo. Está bem?"
Sim. Está bem. Eu, no comando de alguns segundos da vida dela, peguei o laringoscopio e tentava enxergar as pregas.
"Está vendo?"
À segunda vez, entubei corretamente. Estava trêmula pela felicidade de uma vitória.
Aloizia, que caminha ao céu, foi minha primeira entubação à beira leito.
Aloizia, quando for um anjo, esteja ao meu lado também. Quero sentir as pernas trêmulas de felicidade ao conseguir salvar alguém e lembrar de você.

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