O sangue de José

 Era o primeiro quarto no segundo corredor. A primeira vez que o vi estava sedado e entubado, à mercê dos disparos do ventilador. Dia primeiro de setembro de dois mil e vinte. Demorei a examiná-lo já que não havia o problema de estar incomodando-o, tampouco o contrário. Parei em frente à ele, e contemplei cada cicatriz e hematoma do seu corpo magro e esquelético. Auscultei seus batimentos e murmúrios com calma. Pronunciei em voz alta suas pontuações na escala neurológica. 

Fiz dele um breve treino para recapitular a propedêutica. 

No dia seguinte, passado o furacão de conhecer o desconhecido, estava ainda ele inerte com os mesmos olhos saltados, porém respirando já com os próprios pulmõezinhos pequeninos, sem tubos, sem drogas. Não ditava frases inteiras, porém articulava com nitidez palavras-chave. Articulava com os lábios e as pupilas daquele olhar de interrogação. José Ricardo, que já tinha a tetraparesia do doente crítico, movia-se com as lágrimas escondidas nas quinas do olhar. 

Expliquei que precisaria coletar uma gasometria arterial, um exame dolorido e necessário. Ele nem se lembrava da dor quando inconsciente durante aqueles sete dias, então logo concordou, sem titubear. 

Busquei a seringa, a agulha, as gazes e o álcool. Senti o pulsar da artéria radial, avisei a picada e furei seu bracinho delicado com a agulha. José Ricardo reclamou e embraveceu. 

"Ai ai ai" 

Recolheu os membros para si como reflexo.

"José, eu sei da sua dor, mas preciso fazer isso." 

Ele me fuzilou com os olhos, e conseguiu expressar o ódio em trechos lacônicos:

"Pimenta...nos outros...refresco."

Queria ele profetizar um discurso de oposição. Ardia ali o desespero da falta de músculos e oxigênio para caçar sílabas e sentimentos. 

Eu expliquei que entendia a dor, e desculpei-me pela tortura que causava. Disse com cautela, e com o pouco de amor que já sentia desde o dia anterior. 

A resposta contrariada foi como de uma criança que está de castigo:

"Então...vai... logo". 

De fato, não tenho tamanha habilidade para puncionar artérias, ainda mais quando vejo e ouço grunhidos de dor. Todavia, senti-me ainda mais pressionada, como se não pudesse errar na última chance. José Ricardo não iria me bater nem debater, mas senti medo. 

Busquei outra seringa, outra agulha, gazes e mais álcool. Senti novamente o pulsar da artéria no outro braço, e me concentrei ouvindo o silêncio gritante de Ricardo. Puncionei novamente. 

Ele logo pergunta com a voz rouca tabágica:

"E aí?"

Nada de vir alguma gotinha de sangue. Nada. Que novela brutal na gasometria de José! 

"Desisto.Tudo bem.Vou chamar alguém que o faça melhor do que eu, sem lhe machucar. Tá bem?" 

José Ricardo parecia conhecer os vãos do meu âmago de incertezas. Só me via pelos olhos, com óculos e com a máscara sobre a face, mas talvez enxergasse minhas tonalidades com acurácia. Talvez quisesse ser útil como um professor de vida.

Assim que limpei seu braço em um gesto de sair do quarto, ele apertou minha mão com a pouca força que tinha. 

Disse: "Você."

Queria que eu coletasse. Confiou em mim. Novas gazes, agulhas e seringas. 

À punção instantânea dessa vez, fluiu sangue vermelho arterial. Olhei à ele quieto, afogado na dor calada e contei emocionada.

"Consegui, José!" 

Em seu sorriso sem dentes, ele se orgulhou e novamente apertou minha mão. 

"Não delegue à outro algo o que é capaz". 

José Ricardo me chamou de anjo do céu, mas desconfio que ele seja o meu. Um anjo escondido no leito do meu primeiro dia naquele hospital. 

Alegrava-me de ver aqueles olhos tão expressivos esperando eu abrir a porta. Eu resgatava o suspiro do cansaço físico do fim da tarde quando ria de seu bom humor.


Ontem, pediu-me para ficar sentado e prometi que sim. Chamei as enfermeiras e em três, repousamos aquele corpinho na poltrona ao lado da maca. José deixou cair a cabeça sobre meu ombro e chorou. Que choro tão bonito! Sentar-se ali era ver o mundo sob outra visão, colocar os pés no chão. 

José Ricardo era porteiro, e abriu para mim as portas de suas artérias. Preencheu as lacunas da minha insegurança e fez-me feliz. 




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