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No leito nove.

 A porta de entrada eram os bráquetes dos seus dentes, os lábios ressecados e os olhos cansados. Tão magro que os braços e pernas se uniam ao tronco como um bloco. Ele nem sabia descrever ao certo sua queixa de tão humilde e escasso que era o leque de seu vocabulário. Eu perguntava sobre sua vida, e puxava com esforço a cordinha que me levava até o lugar onde queria chegar. Então, descobri que trabalhava em indústria de cromagem, e não estudava mais.  Ele tinha vinte e quatro anos, mas vendo-o ali tão frágil e derramado sobre o leito, dava-lhe facilmente dezoito. Era novo, porém seu corpo já era um turbilhão de reações orgânicas e mutações. Foi premiado com uma provável leucemia mieloide crônica, e de rua em rua, hospital em hospital, chegou ali em nossas mãos para ter sua doença solucionada de uma vez por todas. De uma vez por todas, por favor. Eu tinha pouco mais que sua idade, mas possuía naquele momento a propriedade absoluta de intervir de algum modo nas célulazinhas de seu corpo

Olhos em sol a pino

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 Ele era entregador de pizza, e tinha vinte e seis anos. Eram sete horas da noite, quando viu na rotatória um carro em alta velocidade. Ambos,  à tentativa de ultrapassar um ao outro, colidiram. Em alguns segundos, todo o lado direito do jovem motoqueiro estava ralado e fragmentado nas pedras da rodovia. Fraturas da clavícula, escápula, fêmur e tíbia. Segundos eternos de sofrimento para perder a mobilidade, e mudar de direção num caminho de juventude e independência. Num caminho de luta e trabalho para sustentar dois filhos, como disse para mim.  Seus olhos verdes e penetrantes chamaram-me atenção da primeira vez que o vi. Não estava de máscara, mas era como se um lago cristalino no deserto brilhasse no sol a pino de suas sobrancelhas. Olhei ao monitor, e vi a frequência cardíaca a cento e quarenta batimentos por minuto. Logo perguntei: "Está com muita dor, não é?". Havia ali a vontade de ser coerente com sua masculinidade do olhar e de suas tatuagens de animais distribuída p

A falta de mim dentro do outro.

  Quarenta e sete anos,  setenta e oito anos, noventa e dois, quarenta e um...  Falta de ar, dor abdominal, pernas inchadas, febre, dor, muita dor, você nem imagina!  Há quanto tempo começou? Usou algum medicamento? Tem comorbidades? Fez exames? Fez ou não? Tem que saber! Como ele está? Como ela está? Desidratada, taquipneica, mal perfundida...? Um ao lado do outro em cabines de impessoalidade. Cada olhar é um encontro de alguns minutos, é o atravessar da terra ao céu pelas púpilas mórbidas do homem que vai conhecer o terreno do infinito. Por quê evoluiu mal? O que foi que erramos?   Cada vida é tão imprevisível que dilata e encurta, morre e ressuscita tão subitamente nos muros do nosso olhar, nas quinas do nosso conhecimento sufocado. Cada vida é uma maquinaria de parafusos miúdos, sem chaves de fenda corretas. Preciso, então, concentrar-me em cada palavra de dor que sai dos lábios leigos desse homem e dessa mulher e transformá-las em versos de medicina, técnicos e frios. Os raios e f

O sangue de José

 Era o primeiro quarto no segundo corredor. A primeira vez que o vi estava sedado e entubado, à mercê dos disparos do ventilador. Dia primeiro de setembro de dois mil e vinte. Demorei a examiná-lo já que não havia o problema de estar incomodando-o, tampouco o contrário. Parei em frente à ele, e contemplei cada cicatriz e hematoma do seu corpo magro e esquelético. Auscultei seus batimentos e murmúrios com calma. Pronunciei em voz alta suas pontuações na escala neurológica.  Fiz dele um breve treino para recapitular a propedêutica.  No dia seguinte, passado o furacão de conhecer o desconhecido, estava ainda ele inerte com os mesmos olhos saltados, porém respirando já com os próprios pulmõezinhos pequeninos, sem tubos, sem drogas. Não ditava frases inteiras, porém articulava com nitidez palavras-chave. Articulava com os lábios e as pupilas daquele olhar de interrogação. José Ricardo, que já tinha a tetraparesia do doente crítico, movia-se com as lágrimas escondidas nas quinas do olhar.  E

Lembrei de você

 Olhe para cá, meu bem. Olhe aqui no fundo dos meus olhos, sem medo.  Hoje de manhã pensei em você. Eu lembrei da sua voz suave e dos seus lábios esgarçados. Lembrei de quando você me convidou para sentar à luz da lua à meia noite, na beira do mar de Santa Luzia. Era tarde, mas estàvamos em euforia como se já fosse o nascer do sol de inauguraçao do universo. Não tinha dado nem tempo de seus cabelos terem se livrado da maresia. Mar e heresia de nossos pés. Estàvamos escondidos à cumplicidade das estrelas, a quem tínhamos confiado o segredo de nossa  transgressão.  Não desvie seu olhar, querida. Somos só nós dois. Não se culpe por ter feito o que fez. Seu instinto irrompe de lugares muito mais profundos do que seu mero superego, do que sua vã filosofia de conveniência social. Obedeça seus desejos súbitos. Não os questione tanto assim. Isso cansa à você e aos outros.  Na verdade, pequena, hoje vim aqui com vontade de lhe entregar flores e um beijo. Lembrei, entretanto, que você não cuida

Ao Geraldo: homem de lança

Senhor Geraldo dorme ali ao lado da janela, de frente para o estacionamento do hospital. Ele está ali à beira das árvores, mas perdeu setenta por cento da capacidade da visão. Não vê as flores e folhas e os carros. Não enxerga com detalhes meus olhos como eu vejo os dele. Quem sou eu para Geraldo? Um risco branco às oito horas de cada manhã? Sou a voz que pergunta suas dores e se urinou. A mão que retira o cobertor dos pés e sente se estão inchados. Eu sou a notícia que ele não quer ouvir. "Vai ficar aqui conosco ainda, seu Geraldo." Ele carrega a dor da solidão e do que consome todo seu corpo por dentro e por fora. Ali no canto do quarto, ele pensa tanto, tanto (tanto.) que quando o vi dormir até franzia os olhos. Estar a pensar sobre a vida sem cessar certamente deve lhe dar a sensação de viver por uma eternidade e ter a angústia do segundo sofrido e demorado. Em uma de suas eternidades e divagações dilacerantes, houve uma epifania. Foi o ápice do desespero e o mergulho n

Índia Zilda

"Tá cada dia mais bonita, hein filha." Sessenta e seis anos, com sorriso postiço e cabelos de índia além dos ombros. Não tinha queixas e agradecia a qualquer um que lhe viesse ao leito. Ela era uma senhora tão humilde que meu toque à sua mão para sentir o pulso já lhe fazia sorrir, e então logo dizia: - Que mão quentinha. A minha está tão fria. Eu explicava com cuidado: - É porque estava andando para lá e para cá, dona Zilda. Sorria. O coração da senhora era grande e bonito, mas parte estava a fadigar. Artérias obstruídas tal qual parte de um caminho nosso cheio de pedras. Retirá-las e deixar o sangue fluir. Dona zilda partiu a desentupir os canos do coração. Tão bela e feliz sem dentadura, que era como se houvessem dentes de ouro de Deus pendurados ali. Era uma despedida da terra. Uma Índia nua sem as batidas do coração. Vestígios da terra se dissipam no universo. A fragilidade do humano me impressiona a cada ida, a cada suspiro.

Os pulmões de Aloizia

Alguns mililitros removidos do sexto espaço intercostal, de aspecto turvo e inodoro. "Está doendo, Aloizia?" Está doendo. Já vai acabar e você deita novamente. Ela tem dez anos a menos que minha mãe e dez quilos também. O rosto é quase triangular, com vértices bem delimitados pela proeminência de seus ossos. Os cabelos finos e curtos, e os lábios pálidos quase se escondiam dentro do buraco fundo de sua face de terror. Pode se deitar agora. Vai ficar um pouco dolorido no local da picada. A moça deita, com a cabeceira inclinada e respira ligeiramente melhor. Aceita mastigar quinze grãos de arroz e um gole de água curto e disfarçado. Era um aceno ao estômago que gemia e um banho rápido das papilas da língua. Que bom que tinha se alimentado, porém a refeição servida há pouco parecia intocada. Grãos, leguminosas e proteínas ali separados. Nenhuma porção de feijão sobreposta ao arroz. Nada! Claramente Aloizia estava em jejum. Não ingeria alimentos e nem a própria vida. Estav