Olhos em sol a pino

 Ele era entregador de pizza, e tinha vinte e seis anos. Eram sete horas da noite, quando viu na rotatória um carro em alta velocidade. Ambos,  à tentativa de ultrapassar um ao outro, colidiram. Em alguns segundos, todo o lado direito do jovem motoqueiro estava ralado e fragmentado nas pedras da rodovia. Fraturas da clavícula, escápula, fêmur e tíbia. Segundos eternos de sofrimento para perder a mobilidade, e mudar de direção num caminho de juventude e independência. Num caminho de luta e trabalho para sustentar dois filhos, como disse para mim. 

Seus olhos verdes e penetrantes chamaram-me atenção da primeira vez que o vi. Não estava de máscara, mas era como se um lago cristalino no deserto brilhasse no sol a pino de suas sobrancelhas. Olhei ao monitor, e vi a frequência cardíaca a cento e quarenta batimentos por minuto. Logo perguntei: "Está com muita dor, não é?". Havia ali a vontade de ser coerente com sua masculinidade do olhar e de suas tatuagens de animais distribuída pelo corpo, porém a dor transcendia qualquer valor ou crença, qualquer personalidade intrépida. Ele descrevia a dor, com a melancolia da voz pela distância de seus filhos, pela perda de seu trabalho, pelo preço de sua moto e pelo seu medo de pedir ajuda. Não queria depender de ninguém, e nem chorar a cada banho e manipulação. Eu ouvi seu discurso sem consolar ou revidar ao primeiro diálogo, e senti a dor como a dor que eu tenho pelos rabiscos que fiz em meu corpo, em menor proporção. Surgem, então, pensamentos com a culpa de que deveríamos ter feito diferente. Deveríamos ter virado à esquerda naquele dia de madrugada? Deveríamos ter aceitado a proposta de trabalho? Deveríamos ter arriscado e confessado um grande amor? A tinta da vida é tão escura e forte, que não perdoa enganos. Ao querer consertar certas vírgulas ou sentenças, já borramos todo o quadro. 

Em um momento da noite, precisamos levá-lo até a sala de tomografia e radiografia. Era meia noite, e eu queria que ele dormisse pra esquecer o que ardia fora e dentro de si. Descemos em quatro pessoas, e a cada tentativa de mobilizá-lo na maca das salas dos exames, eram gritos de tortura que corriam velozes nos meus ouvidos. Quem escutava ao longe poderia jurar que era um parto normal. Ele pedia clemência pelos olhos e parecia querer desistir de si e do que fizera. Infelizmente, já estava crucificado num corpo despedaçado. Prometi que quando voltássemos ao quarto ele apagaria num sono reparador, livre de agonias ou remorsos. Foi uma ampola de morfina e um comprimido de benzodiazepínico. Dei-lhe um pão com manteiga, e agradeci quando o vi adormecido, imerso num cansaço acumulado de alguns dias. 

A vulnerabilidade do corpo humano é, de certo modo, aterrorizante. Nossos ossos, vísceras, artérias e veias podem ser dissecados e esmagados pelo acaso do universo, e da natureza. A imensidão do mundo põe em xeque a grandeza de nossas questões e certezas. Em segundos, fraturam-se ossos e sentimentos. Que o homem dos olhos de oásis reconstrua suas rupturas, e ponha-se de pé em frente aos filhos. Que não nos culpemos pela imprevisibilidade do universo. O que é a vida senão um verso nos poemas do infinito? 






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