texto da gincana

Hoje eu cheguei em casa e beijei minha mãe. Depois, fui até a sala e sentei para ler um livro. No meio da leitura, meu pai chegou. Beijei-o naturalmente mas nada mais que um beijo de obrigação de filha, beijo de desdém, beijo de pressa porque queria retornar logo à minha leitura.
-Como você é estúpida!
E se eu acordasse e não os visse mais? E se eu acordasse e sentisse a falta de alguém perguntando:
-Está levando a blusa? À noite esfria!
-Já jantou? Tem arroz fresquinho na cozinha para você!
-Ouvi seus passos de madrugada. Foi dormir tarde, não é?
Eu chegaria na casa vazia e começaria a esperá-los sentada no sofá.
Eu chegaria na casa vazia e sentiria o cheiro tão peculiar da roupa deles.
Eu chegaria na nossa casa vazia e veria o reflexo da minha alma em todos os recintos.
-E por que não os beijou? Inferno!
Porque eu esqueci. Eu esqueci, esqueci, esqueci que não há o eterno. Eu esqueci que aqui em casa tinha gente vivendo só pra mim. Olha só como a gente pisa no fio da vida com o pensamento do sempre, não é?Olha só.
O que mata o homem é o desconhecido, é essa vontade de saber de onde vem, para onde vai, o que é. O que é esse mundo onde a gente só explica o que vê? O que são essas vidas que ligam e desligam? E se isso for um sonho,onde a gente acorda e dá-se com a morte?
Aqueles lá choram porque querem ter os olhos claros,os cabelos lisos.Choram pela cobiça de corpos altos e delgados. Choram pela cobiça de moldes físicos e mentais impecáveis. Parem com isso! E eu ainda deixo viver pelo que aqueles dizem que sou.
Ninguém é nada. Ninguém é ninguém.
Um dia enterra na mente a ideia de que somos todos procuradores da felicidade entre as pedras do chão.Somos todos a lava de um único vulcão.Cicatrizes das nossas próprias feridas. Renascimentos das nossas próprias mortes. Somos compostos de compartimentos e antíteses!
E é exatamente por isso que vou acreditar no que sou, no poder dos meus olhos, da minha essência, dos meus paradoxos, ir até você e conseguir pedir o beijo. Conseguir tirar essa calça preta que colocaram em mim.Conseguir, ao menos, sentir o meu próprio âmago!
Não. Não consigo fazê-lo uma vez que estamos todos enclausurados no padrão da sociedade.Uniformizados no tumulto encardido. Pintados pelas mesmas mãos da oligarquia. Adestrados no mesmo campo preto e branco.Estamos irrefutavelmente dopados pela pressa. Ser o que somos é marchar no sentido contrário do exército mundial. Ser o que somos é tangenciar as regras do mundo. Ser o que realmente somos é cultivar uma flor em pleno asfalto.
Então, onde está a liberdade que nos contaram? Onde está a mente aberta que nos disseram ter? Onde está a certeza de que sim, sentimos por conta própria e não nos mandaram sentir?
Pois bem, não existe, não é? O que existe é essa rotina que engole a gente e quem a gente ama. Esses passos automatizados que damos para o mesmo percurso todos os dias. Essa monotonia empoeirada a qual estamos submetidos diariamente.
Mas então vamos lá! Vamos ser o que somos, vamos finalmente pedir o beijo.
Vamos lá dizer a quem devemos que amamos.
Vamos ser quem somos sem seguir essa reta inútil que o universo traça.
Vamos começar vestindo nossas próprias almas.
Vamos lá acordar felizes porque se alguém foi embora agora, já haviamos dito"eu te amo"enquanto estávamos lendo.


Comentários

  1. Ciçaaa, esse é o texto que eu mais gosto.... sério, sempre que eu leio, vêm a minha mente aquele telefonema em que vc leu para mim... e bom, vc já sabe, né? Eu amo esse texto..+ uma vez....PARABÉNS...

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  2. Eu amo, adoro, venero esse texto.
    Perfeito.
    Acho que disse tudo ^^

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  3. eeeu amo esse texto da gincana! parabéns, ficou muuuuuuuuuuuuito bom! :)

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  4. Simplesmente doce e casual. Pedrinhas coloridas, colocadas enfileiradas, uma a uma, formando um belíssimo colar de contas. Parabéns Cici!!! Perdi sua declamação, você me repetiria essa gentileza??? *___________*

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  5. Que delícia receber o comentário de um poeta!!! Muito obrigada, Maga!!! Claro que sim! Mas então você também tem de declamar um de seus colares de pedrinhas prateadas... Sim?

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