Sobre uma alma deitada ao chão.

Braços erguidos perpendicularmente sobre um tórax úmido. O peso de nossas vidas vivas em direção a essa reticente despejada sobre a terra. Cento e vinte segundos com a intensidade de um beijo de despedida. Seus olhos a esmo pedem clemência por ressurreição ou fim de alívio. Seus olhos traduzem-se em versos que reverberam e transpassam as grades enferrujadas da minha mente, ao passo que aqueles outros negros juram ver o túnel. Encravados sob suas crenças e planos, anunciam a compra da passagem para sentar-se sob a poltrona desse avião miserável. Miserável para nós. Para quem mais?
 De fato, lágrimas cristalinas e sorrisos amáveis não têm a potência de uma droga avassaladora nem de membros humildes a tentar solicitar a esse coração que permaneça, sim. Não só basta agir cordialmente. De fato, aquela menina pálida das vísceras curtas pra quem peço um sorriso têm mais náuseas do que forças para ingerir meu colorido por vezes hipócrita. De fato, sobreviver diante de um mar revolto já não depende mais da qualidade das madeiras desse barco velho. Novo para os amantes celestiais? 
 Pela minha última vez, coloquei meus braços sobre o corpo suado e senti-me responsável a tirá-lo do avião, seja lá qual fosse seu destino escolhido, qual fosse sua bagagem despachada. 30 segundos. O hálito forte que exalava da boca dessa alma ascendente acabou por penetrar nos meus músculos e tendões que regiam esse ritmo pretensiosamente heroico. 10 segundos. Duas mãos de uma menina, duas mãos de uma mulher, duas mãos de um homem, duas mãos de uma senhora a tentar impedir a decolagem. Mãos, apenas mãos, feitas de carne e osso.
 Já acabou, então. Já passou. Conte à mulher dos cabelos pretos longos e recolha-a com cuidado para aqui junto de nós, com um copo de água. Água doce e cristalina, para lembrá-la de que o sal do oceano do infinito é imbebível, de que o vapor dessa imensidão líquida é intragável.
 Mesmo após ser quase pisoteada num tumulto de vidas que vão e vem, vou até a padaria e tomo um café, com grandes pretensões. Abro a porta de casa e dou imenso valor a esse quadro de avisos lotado de papeis, repleto de pendências formais. É assim, sempre será. Pairam sobre nós alertas de nossa pequenez e ainda abaixo dessa atmosfera colossal, nós continuamos a nos portar como reis desse universo que se inicia rigorosamente às segundas e finaliza-se domingo.

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