miseráveis chãos e tetos instigantes

Casas enfileiradas, buracos e escadas que nos conduzem a becos domiciliares. Um recinto constituído por colchões espalhados no chão úmido e inóspito não recoberto por azulejos, cabeças despejadas nesses fragmentos de lã. Um odor forte e penetrante impregna em nossos corpos e institivamente faz-nos querer sair para respirar por instantes um ar menos carregado. Uma atmosfera escura e sufocante embala-nos sob os móveis e quinas da pobreza, e permite-me ver pouco detalhadamente os olhos negros que nos recebem aos seus palácios de granito e poeira de tabaco. Dentes cinzentos consumidos pela nicotina, que os impele ao esquecimento de toda a podridão macerada nessa terra ao redor e põe-os alheios a tudo que é vão. Vida vã cerrada nos fundos de um quintal com singelas vestimentas. Muitas dessas lavadas, úmidas e já vestidas no corpo magro. Durante tanto tempo ali, acostumo-me com o cheiro marcante e característico que exala. Não há tanto mais cheiro e tampouco escuridão nas lacunas desses corpos. É o que deve ocorrer todos os dias ao chegarem aqui onde estou : ser moído pela aura opressora de um pedaço de terra, porém esquecer-se do que é vivido depois de tanto viver. Esquecer-se da indigência depois de tanto migrar por estes cascalhos dispersos à margem do mundo. Sinto náuseas ao sentar ali a observar e simultaneamente desenhar no pensamento o cenário do meu piso intacto. Meu piso intacto. Intacto. Uma ânsia estonteante que me conduz incessantemente de um universo para o outro. Regurgito, enfim, sobre todos meus sentimentos supostamente ricos e limpos, banhados a ouro.
"Senhoras e senhores, ponham a mão no chão! Senhoras e senhores, pulem de um pé só." Senhoras e senhores, desfrutem desse quintal abandonado e aceitem os pedaços e miolos de pães que lhes depositarem nesse portão enferrujado.
Vidas pouco densas flutuam nos córregos escondidos debaixo de pistas, nos quais misturamos fragmentos de mãos e pés com abundantes volumes de líquido fétido e turvo proveniente desses sacos pretos. A cada passo por essas ruelas de barro e pedra, tenho vontade de descrever uma fotografia em sépia diferente, peculiar. Entretanto, o que permaneceu à memória foi uma centena de cabeças e pernas finas amontoadas nesse mosaico dos tijolos e paineis de madeira. Ecoam algumas das vozes grossas e defensivas que respondiam ao nosso questionário burocrático e inútil. Questionar dores, marcá-las com tinta preta no papel verde controlado e enfim, depositá-las nesse móvel de doenças à resolução.
Triste é concluir que sinto pleno alívio ao abandonar essa viela de almas despejadas, ao passo que tais homens deveriam serenar ao chegar finalmente nessas travessas de suas casas. Casas? O melhor abrigo será a calçada dos seus próprios âmagos, que fatalmente nunca haverão de desmoronar e putrefazer tão velozmente nessa tempestade, nessas águas sujas de universo desigual.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Da lua cheia de minha janela quadrada

O sangue de José

No leito nove.