Ocaso da janela



Desvencilhar-me da personalidade tão colada à pele era o que desejaram ontem à luz de um poente sugando-me pelos vidros da janela ao passo que os pés prendiam-se às ferraduras do chão. Chaves de fenda do moralismo prendem o corpo a esse recinto renomado do branco e preto, fixam minhas peculiaridades às quinas mais frágeis da subconsciência. Consciência? Não sei, os martelos revelam sua extensa funcionalidade ao soquearem os desejos impulsivos fora da curva que vêm à tona.
Afinal, o que diabos é manter-se sob as linearidades do adequado num tumulto de finitos e indecências?
Prendo-me num planeta milimetricamente redondo, como pregado durante a infância. Redondo, com calculada porcentagem de água e terra. Indiscutível. Arriscar tanger a zona alheia ao sistemático e a essa porção de mundo incontestável paradoxalmente põe-me em desprazer. Medo, erro... Infração? O gravíssimo delito de sujar as roupas com tintas do ócio vão. De volta para a casa a ensaboar os tecidos imundos, cidadã. Atente à pista delimitada com largos pontos brancos!
As doutrinas do correto empurram esses membros que já titubeiam e levam-nos até a porta. Ah, hei de pedir-lhe licença, senhoras! Deixem-me descalçar, por favor? Deixem atravessar esse círculo e voltar sem remorsos ácidos que escorregam o esôfago e lembram-me da hora perdida ao tempo que corroem a mucosa sã. Gostaria, enfim, que retirassem a bússola do cubículo de meus instintos para que entranhassem pelas vísceras e entrelinhas e fizessem-me atuar conforme minhas próprias direções de felicidade nua.
Quem dera viessem em milhões a estraçalhar as minúcias do âmago a ver se a nova obra de arte é finalmente capaz de caber no incabível e decide, por fim, abrir de uma só vez essa janela embaçada.  Abri-la para banhar-se no ocaso. Crepúsculo inacessível, essa obra inédita sairá correndo por aí afora a fim de construir alguma memória e recuperar o que não fui em tempos de integridade. Ela lhe pedirá risos sem culpa e a atenção de amores sinceros vívidos e intensos, que ainda estão bem aqui ao lado, na sala de jantar.
Atravessar esse círculo e sentir o gosto doce das frutas do jardim de dona Olinda, desfrutar da falta de ar ao rir pela graça de contemplar a lua ao lado de pares de olhos luzentes. Rir pela graça de cometer equívocos e ser tão imperfeita como é de fato um humano nu. Era o que desejaram ontem à beira de um anoitecer.

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