À porta

Desceu as escadas subitamente depois de ouvir o som da campainha e das fortes batidas na porta de madeira. O batom que deixara na mesa de jantar na noite anterior atentava-a para se arrumar. Pintou o contorno dos lábios de vermelho e tingiu os beiços vistosos de carmim. Passou sobre os olhos o delineador preto e por fim, pendurou seus brincos de pérola, que se perdiam entre as ondulações dos longos e grossos fios de cabelos castanhos.

Olhava-se no espelho como a moça rainha da primavera, que marcadamente estreara no dia anterior. Sim, a primavera dos desejos apetitosos, das felicidades ingênuas e da vontade de colocar orquídeas sobre a pedra dos finados eternos.

Como então amante das flores, faltaria o perfume. Deixara-o no armário do quarto, muito bem guardado para ocasiões especiais. Espirrou-o sobre os punhos, roçando-os na nuca. Aquele era o aroma suave, porém marcante que a fazia sentir-se mulher por inteiro. Ouvia novos estrondos na porta como a revelar suposta impaciência. "Espere, por favor!"

O vestido azul marinho estava demasiadamente pesado para a abertura de uma porta desconhecida, sem ao menos saber se receberia rosas a serem postas sobre o móvel luzente. Optou apressadamente pelo lilás e pôs-se outra vez à frente do espelho. Não era exatamente como queria, mas já estava com muitas delongas. Finalmente, pegou as chaves.

Viu-o estendido tal como se estivesse a vida inteira sobre aquelas escadas, realizando conjecturas sobre o que estaria acontecendo além da porta. Viu nele despejada uma beleza cotidiana, contudo arrepiante. Os olhos mais castanhos, os cílios maiores e os dentes mais alvos que de costume. Ele, por sua vez, contemplava a pintura que o enleava e dissipava-se para sua mente em imagens caleidoscópicas. O perfume da moça arrastou-o para uma vertigem atípica e seus pés titubeavam entre o lado de fora e o interior da casa. Não, ele não trazia rosas vermelhas. Não trazia tulipas, lírios, orquídeas ou gerânios. Nunca se pode querer desenhar gravuras deslumbrantes, pois há de vir um pedaço de chão para despedaçar nossos objetos de vidro. O homem carregava, pois, consigo meia dúzia de pães frescos. Pães frescos? Talvez um convite para apreciar o religioso café em um fim de dia tão ordinário quanto a íntegra rotina de ambos.

A mulher segurou o pacote e seus braços trêmulos, levando-o a acomodar-se sobre o sofá. Ali ele estava naquele ambiente mais uma vez, sobre aquele estofo imundo e abaixo da lâmpada tão suja. Mais uma vez, mais uma vez. Toda aquela situação assemelhava-se a um vício ilícito. Nessa, parecia mais vulnerável. Embriagava-se pela sua voz lânguida a convidá-lo para experimentar os tais pães. Já a moça nunca o vira tão calado e contemplativo. Ele que era sempre tão loquaz e vinha-lhe com regurgitações eruditas, com novas seitas, descobertas e teorias. Desse modo, ela sentia-se até certo ponto tola pelo atraso ao adornar-se toda.

"Sente-se aqui e sirva-se."

Tratava-o como se houvesse o pacto tácito de um casamento às primaveras e aos outonos. Ele fez-se não ter escutado o chamamento e retirou o extravagante livro da estante empoeirada, declamando-lhe os versos da memorável tarde no largo:

No fim da vida, caíram teus cabelos, mas guardo um fio entre minhas páginas
Guardo um pedaço do cordão de sua calça mal lavada
Foram-se mesmo muitas poesias queimadas em vão e tantas lástimas
Tenho, porém, ainda junto de mim o pedaço estorricado das suas proclamações ditas pelos olhos, com você inteiramente calada.

Pelos tais segundos líricos, a moça pode enxergar o homem ao qual estava acostumada. Ah, que alívio! Quantos minutos a mais permaneceria com os ouvidos atentos e ao mesmo tempo, fingindo coar o café? Talvez fosse capaz de dissimular o café eterno para escutar-lhe, colocando pó e água em uma sequência infinita. Ter-se-ia ao final a bebida de letrinhas, que os tornaria lunaticamente ébrios pelas frases nunca ditas por ambos. Engoliriam os próprios pensamentos a cada gole. Ingeririam suas verdades sempre sufocadas por tampões gigantes construídos pelos mandamentos alheios. Cada vez que o ouvia proferir suas reles palavras, era sempre de um modo diferente.  Nesse momento, era como se houvessem gotas de água em cascata sobre cada sílaba, enquanto ditas com tanta convicção. Infelizmente, porém, os versos finalizaram-se num piscar de olhos.

 Recitou-lhe tal qual o insurgente a querer revelar seus anseios por meio da arte, de modo a realizar uma confissão implícita. Contudo, ele nunca quereria dizer além do dito. Nunca, nunca. Seria sempre sua estúpida casualidade poética. Seriam sempre aqueles ensaios literários oriundos de seus furacões noturnos. Ela já devia tê-lo percebido durante o encontro na Praça dos Santos, durante seus olhares publicitários e casuais. Todavia, era de seu gênio deleitar-se por amores renitentes que repousavam na varanda do mundo, ao som de odes lamentavelmente hipócritas. Era de seu gênio ser hipócrita e gostar de quimeras lambendo-lhe os olhos. Despretensiosamente, então, retirou os brincos de pérola, colocando-os sobre a mesa ao lado do batom. Qual haveria de ser o museu diante daquela tábua de vidro? Passou discretamente os dedos sobre os lábios a fim de retirar o excesso da tinta. Um pensamento intempestivo fê-la querer subir e retornar ao vestuário azul marinho. Não, isso já era demais. 

Sem fazer qualquer comentário a respeito de sua atuação, ela colocou o prato no seu joelho e deu-lhe a xícara na mão. Ele aceitou o café como por um reflexo para não o deixar cair no chão, mas colocou-o sobre a mesa e também o prato onde estava o pão puro e torrado. Levantou-se e foi em direção à mulher séria apoiada sobre os braços da cadeira. Estava séria, sim, mas constatavam-se radiações de euforias em porções de suas pupilas, nos movimentos de seus dedos e no quase aparecimento de suas covinhas. Olhou-a dentro de seus olhos caramelizados. O tempo foi eterno para ela e naturalmente, controlável para ele, que segurava as rédeas de todas as situações e dominava as cordas presas nos membros de sua mulher-títere. É certo que hoje estava emudecido, mas ainda assim mantinha sua conduta. Observou os lábios borrados de tinta carmim. Toda a análise era precisa e demorada. O que mais a enfurecia era o fato de estar sujeita às suas vontades e humores. Alguém de fora lhe diria para não abrir mais a porta, porém ela era frágil e quebradiça. Tinha uma individualidade muito volátil e perdia-se entre suas próprias transmutações. Queria andar nas cordas que lhe eram cedidas. Queria ao menos ser agradável, com o medo de despencar em rodas de debates prolixos e espinhosos. Ao menos, queria ser. 

Ao final da dissecção de resquícios de sua alma pincelados em partes do corpo, ele beijou os olhos pintados da moça. Não era um beijo carinhoso, mas sim tratava-se de um carimbo para certificar a lenta e opressora verificação, para certificar a entrega dos pães. Na verdade, nada daquilo continha ternura. Então, ele pronunciou-lhe aos ouvidos: " Tudo bem. Até mais." Um vendaval de palavras desestabilizou os lábios da mulher, tornando-os trêmulos e os olhos alagados. Não conseguia, porém, dizer nada. Não era capaz de dirigir-lhe um olhar exprimindo o ciclone de emoções que a alfinetavam toda vez que era massacrada. Toda vez que ele vinha de tão alto abarrotado de dogmas, que exalavam em sua respiração forçada.

O homem foi até a porta não com a mesma ansiedade inicial. Pelo contrário, estava sereno. Abriu-a, saindo sem fechar. A mulher também não a quis fechar, afinal ele entraria novamente. A recusa em destrancar portões nunca fora seu forte. 



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