Pulsação irreversível

Estão lá a registrar o nome de todas nossas partes na toalha do céu, ou do mundo. Andam a cadastrar as mais lindas minúcias nas folhas recicladas de seu reino. Cloto tece e guia-nos para o início do desconhecido; Laquésis enrola os fios da vida sob seu corpo, dando-nos a encrenca do que é ser humano e Átropos finaliza o trabalho da eternidade que é viver.

Fatalmente, esse encargo de vasculhar os ditos labirintos da realidade é linear e coloca-nos, enquanto seres vivos, numa guerra de freqüente início esplêndido e rude fim. Quaisquer que sejam os minúsculos ou imensos potes de bronze, prata ou ouro, um súbito tiroteio tem dimensões e balas suficientes para acertar nossa porção mais vulnerável. Porção essa que provavelmente ainda não foi bordada na emenda de retalhos do mundo. A bala de Átropos derruba nosso corpo contra a terra e finda o pulsar de um organismo até então incessante. O tecido da vida será, então, exposto aos admiradores ou esquecido sob a estante da sala de trabalho das Moiras. Infelizmente, há bastantes obras com demorado tempo de tecelagem, mas que enfim renderam-se ao esquecimento do infinito.  Obras lindas e poéticas, obras lindas e concisas ou então, somente obras. Certamente, todo indivíduo tem conhecimento de seu roteiro irrefutável, mas ainda assim julga-se pincelado com as tintas da imortalidade. Desse modo, põe sua vida e seus fios dentro de uma caixa de vidro para, aos poucos, adorná-la com o que encontrar pela trilha da negra imensidão. Ao fim, penduraria sua arte na parede do universo a fim de que todos esses milhões de olhos a nos esmagar diariamente pudessem admirar o feito. Todavia, a multidão estende-se durante cinco segundos diante do caixote e segue além em busca de todo fruto que é mortal. A multidão deposita sobre o túmulo uma lágrima de satisfação pela conduta da vida e facilmente consegue deixar de sofrer por algo que não é seu.

Sujeitos à crítica dessas cabeças ingratas, seria conveniente agradarmos, pelo menos, a nós mesmos. Sujeitos à linha tradicional, seria natural querer mergulhar na anarquia humana sem importar-se com a exposição de nossa vida ao seu fim.  Acabou, o que importa agora? Seria natural querer conhecer o inédito. Não haveria nada mais simples do que se dedicar ao amor nu enquanto há sangue vermelho insatisfeito com somente nossos vasos. Gostar de olhar essa pintura do mundo daqui de cima todos os dias e sentir-se, pois, espairecido. Querer cavar a nossa própria terra para encontrar o que de fato nos pertence e ao que realmente queremos pertencer. Quereríamos mesmo ser calculistas dessa porção de concretos? Quereríamos criar tantas relações tolas ao som de batidas sociais? Viver sob a penumbra e o cheiro de plástico de uma máscara estupidamente feliz? Talvez sim, com o objetivo final de sermos aclamados durante algum tempo eterno para o pedaço mais ambicioso de nossa personalidade tão pobrezinha. 

 Parece-me claro que essa tarefa indelegável das Moiras já é em vão. Esse homem de terno caminha na direção do edifício sem janelas e não se pergunta se está faltando algo. Admira a moça loira que trabalha na mesa ao lado, sem ao menos ter ouvido sua voz e alma. Desfruta do tempo do mundo e usa a tinta universal para escrever uma história mal feita.

Homem de terno, esse tempo também é seu e o livro será relíquia somente sua de uma vida inteira. Uma relíquia de toda a tecelagem que não pode ter sido debalde.



O tempo- Henrique Bernardelli

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