Catarina
Catarina foi até a quitanda
comprar morangos. "Não há morangos,senhora. Há graviolas." Bastaria sair daquele
porão velho sem as cem gramas de morangos e achá-los, enfim, em outro
lugar. Entretanto, não sabia negar e aceitou uma dúzia de graviolas do vendedor velho. Levou-as pesadas e sentiu-se plenamente cansada ao chegar em casa. Era como se estivesse suportando uma
fadiga alheia. Quando descascou a fruta, viu-a podre e escura por dentro. Não as
queria. Comprou-as por quê? Porque sua segunda opção definida eram
graviolas, claro. Não, não seja hipócrita, Catarina. Porque gostaria de ajudar o
senhor Amélio. Não, definitivamente não seja hipócrita. Porque as graviolas
chamaram-lhe atenção. Sim, eram tão bonitas e atraentes que pareciam doces.
Não
sabe ir contra seus pensamentos, contra o senhor Amélio ou qualquer um. Não sabe
fixar-se num ponto e manejar seus microcosmos sem sair dele. Não sabe, não
sabe! Não sabe que há centenas e centenas de morangos vermelhos atrás da porta e
que serão oferecidos àqueles que recusarem graviolas podres sem
titubear, àqueles supostamente intransigentes, ditadores e eloquentes. Catarina, entretanto,
admite o fruto deteriorado e sujo. Além do seu tapete azul marinho da sala de
estar, comporta-se inteiramente como uma ignorante apesar de não o ser. Pensa e
filosofa dentro de sua mente esdrúxula e infernalmente, esse mesmo universo
interno é aniquilado ao dar-se de frente com um par de olhos fixos e sisudos. Catarina
fecha a porta de sua casa sem olhos, sem lábios, sem juízo de valor. Abre-a
comendo a podridão.
Catarina, Catarina! Outro
mundo de Catarina em que os seres humanos são revestidos pela crosta do
romântico e não são julgados. Quando ela permitir que vasculhemos juntos suas estantes, creio que saberá colocar sozinha os sapatos certos nos seus próprios pés.Onde estão teus dois olhos, menina? Para quê deixá-los no criado-mudo ao acordar? Recolha-os, Catarina. O sono não exige olhares fuziladores. Não pode querer ser engolida assim sem enxergar a certa razão, entende? Eu conheço essas suas grandes pupilas redondas e esse âmago incrivelmente complexo. Esconde-os sob a face piedosa, emocionalmente mutilada e com cicatrizes dos seus próprios cortes.
Não permita que a ponham nesse cubo precisamente calculado e prendam-na conforme essas suas atitudes e expressões paradoxalmente não suas. Não tenha medo de pintar suas pálpebras de roxo bastante escuro e os lábios com um vermelho invencível. Destrua os tijolos do grande cubo e percorra quaisquer caminhos(coerentes ou não). Limpe as pálpebras e pinte-as novamente. Limpe-as e pinte-as até que esse ciclo torne-se irrelevante. Até que os homens da sala artificialmente fria libertem-na do tal espaço moldado por mãos jovens. Até que você mesma se liberte e possa usufruir de tudo que é seu.
Ah, guria! Sabe mesmo que pode utilizar as ferramentas espalhadas no seu corpo e cerne estranho?Se soubesse, parava de sufocar-se no paradigma de cada terra em que anda. Fundamentalmente, é preciso ser Catarina antes de tudo.
A Catarina com quem falo na cozinha mostra naturalmente o rosto nada belo e nada horrível. Essa menina que me despertas às manhãs tem, sim, coragem para expor a face enquanto regurgita todas suas linhas tracejadas há anos. Essa moça leva-me morangos para comer depois do jantar.
Cecilia!
ResponderExcluirSem dúvida esse é meu texto favorito até agora!! Adorei a ideia e achei extremamente direto e coerente. Parabéns, Ceci!