Uma casa


     Ainda há tempo para quebrar as janelas? As portas? Há tempo para para sair de dentro dessa casa oca e branca? Há tempo para respirar o ar de fora? O tempo é nosso algoz. Coloca-nos sobre a mesa e examina-nos enquanto envelhecemos. Lá fora,há tempo ou vida? Alguém quer explicar-me, por favor, o que há lá fora? Alguém ainda aguenta respirar ao pé de um ventilador cinza?
Lá devem estar os meninos famintos com o lençol de concreto. Meninos famintos da longa avenida fuliginosa. Querem comida e aqui, prata. Por que afinal estamos estáticos nessa grande construção? Trilhões de olhos cegos, trilhões de mentes enlatadas, trilhões de humanos feitos de terra úmida. Trilhões de moças fatigadas ao som de teclas. Moças presas, que almejam os troféus dos degraus acima. O que queremos é felicidade ou centenas de expressões boquiabertas ao redor?
Coloquemo-nos juntos diante da porta e deixemos entrar o ar aqui. Há alguma cola em nossos corpos. Estão todos centrados em um único ponto da casa. A senhora pode me levar para a ilha da gangorra, para a vida inesgotável? A senhora já vê minhas rugas, a face pálida e os calos grudados no azulejo?
Peço perdão sincero mas não consegui continuar. Não tenho mais leite. Não tenho mais teu cheiro frequente nem o fubá. Não consegui continuar diante dessa incompreensível ida do homem de olhos verdes. A senhora entende por quê nos colocam aqui dentro? Por que nos dão papeis, papeis, papeis, tinta? Não quero nada disso. Não quero essa cola endurecida nos meus membros. Quero leite puro e pão. Quero abrir a porta e dar aos homens de concreto um pouco da nossa carne crua.
Desculpem-me o anjos mas estou com uma saudade indestrutível que curva minhas costas. Saudade que nasce do vício desses mil sorrisos à mostra por dia. Saudade dos sábados em que nos olhávamos e entregávamos nossas almas por meio das pupilas diversas. Saudade de encontrar aqueles verdadeiros humanos. Está tudo errado, sei bem. Por que os senhores não disseram que estava errado? Por que afogam minha cabeça neste mar de cérebros pragmáticos? Senhores, mostrem nossas vidas sem empecilhos e a brevidade de um caminho cristalino.
Senhores anjos da terra, somos eternos? Senhores anjos do mundo, somos matéria da terra? Somos felizes ou cegos pelo topo? Não me conheço tanto a fim de trilhar meus grandes percursos. Não sei o certo e o ético. Quero ajuda dos seus imensos dedos que apontam. Somos humanos, os senhores compreendem que somos humanos. Senhores anjos universais, rompam a porta branca e deem-nos a felicidade inocente. Expliquem por quê enterram um par de olhos transparentes inteiramente lúcidos. Expliquem se somos o que somos ou se somos criação dessas gigantescas mãos. Se somos seres ou parafusos dessa porta velha. Por que temos de ser impecáveis, anjos? Por que havemos de ser estátuas da praça mundial?
     Não, cidadãos! Não queremos suas joias, não queremos sua roupa deslumbrante. Não queremos teu cabelo brilhante. Apenas estamos na nascente do rio imenso proclamando a felicidade nua. Precisamos de dinheiro, sim. Precisamos de uma calça. Entretanto, nossa maior urgência é o renascer de olhos e corpos rústicos na humanidade, o brotar de olhos que sejam orifícios do âmago.
       Não somos belos, não somos pisoteados. Porém, lamentavelmente, ainda somos títeres inquietos para o romper dessas cordas de aço intermináveis. Parece que querem nos pintar com essa tal tinta espessa. A fiscalização dos indivíduos coloridos está mais rigorosa pois nossa pele já é singela demais. Deuses do mundo, reinventem-nos! Empilhem-nos junto às caixas de leite! Deuses do mundo, abram a porta dessa casa histórica!


Comentários

  1. Ceci!!! Adorei!! Vc escreve muito!!!! Q estilo diferente do meu! Gostei.

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  2. Lenah,muito obrigada pelo comentário. Queria muito ler uma narrativa sua.Publique aí!

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