Perdida, sim.


Não posso ser mais que uma, meu Deus? Não posso ser duas? Três? Quatro? Não posso estar, em vez de ser, a todo momento? Disse a ele sobre minhas dúvidas e inconstâncias. Contei-lhe pontualmente o fato da minha angústia. Coragem! Há de se ter coragem! Respondeu-me então que estou perdida dentro de mim. Perdida? Minha mente foi se rebuliçando e deixou o problema para as gotas de água na minha cara. Gotas tímidas, de certo. Senti-me, de fato, perdida como se estivesse em cima de um pedaço de madeira no meio do atlântico. Comparação hiperbólica mas por que não o fazer quando se trata de alma? Alma é estranha. Sabe-se que tem, sente-se e não se pega. Por um motivo infernal, não se é capaz de retirar a alma do corpo humano e dissecá-la. Guardá-la no armário para, no dia seguinte, continuar o trabalho. Impossível achar esse novelo interno imutável nas pastas e gavetas.
Minha alma é uma cor descolorida. Deixa-me só enquanto anda pelas mentes alheias, depois volta e conta o que viu, conta o que sentiu, conta o que quer ser. Minha alma compete contra si mesma sem regras estabelecidas. A corrida entre seus vários compartimentos morre quando eu morro. E aí então cessariam minhas vontades de ser Ícaro e Dédalo ao mesmo tempo. Hipócritas são os que nascem e já autodeclaram-se, com os lábios apoiados no seio materno, poetas. Dizem-se juristas e arquitetos. Há tanto no mundo. Há tantos no mundo. Sou eu errada em querer ser tanto e tantos também? Errada ou como disse-me, perdida. Pode ser, sim, que eu o seja. Entretanto, não deixo de acreditar que estamos indo para o sentido errado nessa caminhada infinda da construção social. Um homem que coloca o prego no móvel oitocentas e quatro vezes não sabe nem que há uma mesa no final da esteira. Respira o ar de uma árvore de plástico. A imensidão dele é o fundo atingível de um paralelepípedo da indústria. Já se vão as várias mãos que queriam alcançar estrelas e pintar o sol. As mãos medievais e pueris.
Ah! Que tumulto irritante nas minhas costas! Parem de empurrar! Deixem-me aqui um pouco. Passem à frente primeiro. Depois eu me vou também. Centenas de homens gritando nos meus ouvidos mandam-me seguir. Centenas de homens identificados de acordo com as suas funções. Não posso querer ter duas funções, meu Deus? Três? Quatro? A força da multidão é naturalmente maior que a dos meus dois únicos braços. Mandaram-me ser uma e andar.
Acoplada a essas milhões de pernas e braços, pergunto-me por quê há a necessidade de negligenciar tanto do início da vida. Abandonei parcialmente meus amores e características em troca da assinalação de uma opção contida em uma enorme lista de funções. A alternativa nos compõe.
Já vou, miseráveis. Já vou indo, sim. Onde vendem a coleira e marcam-nos com ferro quente? A cada parada, há um sinal digital do tempo restante. A cada parada, sentimo-nos mais burros. A cada parada, um de nossos cordões umbilicais é arrancado.

Comentários

  1. Na minha cabeça tem pelo menos 10 de mim, e conversamos diariamente sobre sermos uma só... mas nunca chegamos em acordo.

    Seu texto está lindo.

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  2. UAU CECI!!! Vc escreve muito!!! Adorei!!

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  3. Gostaria de ter palavras bonitas e inteligentes para falar sobre seu texto mas só sei dizer....que lindo!!!! maravilhoso!!!!vc é a melhor e a mais linda Flor que eu coneço!

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  4. 😒 somos muitos em um só! É cada vez mais se agiganta esse número!! O que fazer? ....

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